Nota sobre a colonização da Internet

João Pedro Garcez
4 min readMar 24, 2021

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Uma rede de redes, a Internet surgiu em meados dos anos 1980 como uma infraestrutura de comunicação que interligava computadores com uma rapidez e facilidade sem precedentes. Inicialmente utilizada pelas universidades, desde os anos 1990 a Internet vem aumentando seu público progressivamente, a ponto de hoje se constituir em uma parte fundamental da vida das pessoas, e inclusive remodelar as redes de comunicação mais antigas — jornais, televisão, telefone, cinema, música, etc. Mas falar da presença da Internet em nosso cotidiano não é o intuito desse comentário. Caberia simplesmente dizer, nesse sentido, que atualmente não saímos da Internet — quem utilizou a rede antes da disseminação das conexões móveis e da popularização do acesso entende muito bem como a expressão “entrar na Internet” constituía um gesto, uma ação consciente para se conectar à rede, algo semelhante ao que seria hoje “sair da Internet”, decidir desconectar-se, ficar fora dela por alguns minutos ou horas.

Nos primórdios da Internet, a rede era como uma floresta: um ecossistema da diversidade, com várias espécies, sujeitos, nichos, vários ecossistemas que coexistiam, e sabiam disso, mesmo que por vezes evitassem se encontrar, aproveitando a vastidão e a penumbra da floresta a seu bel prazer. Quem quisesse sair para caçar ou trocar, precisava aprender os caminhos para isso, evitar as armadilhas, estar atento para os riscos, cuidar a predação. Mas, uma vez percorrida a trilha, o caminho se tornava conhecido, e as caças e trocas eram facilitadas. Nessa mata, estavam disponíveis noticiários, filmes, músicas, literatura, fóruns, games — e, embora pudesse existir uma ideia incipiente de propriedade privada, era a pirataria e o uso comum que imperavam.

Essa Internet andava na contramão da história. Enquanto que o mundo entrava com tudo no ciclo de hegemonia da racionalidade neoliberal — baseada na expansão da lógica de concorrência e dos princípios de mercado à todas as esferas da vida — , a Internet oferecia uma utopia da democratização, do acesso universal à informação, da disponibilidade pública dos bens culturais. Se a queda do muro de Berlin, em 1989, por vezes é assumida como a derrocada da utopia socialista e a vitória do capitalismo como modelo, é interessante pensar como, nesse momento, a Internet aparecia como uma estrutura globalizada que operava em uma racionalidade do comum, na contramão da tendência política e cultural de então.

Não tardou muito para que as forças do mercado, através de oportunistas do lucro, decidissem colonizar a Internet, expandindo, justamente, a racionalidade neoliberal até a rede. Nesse processo, a Internet-floresta foi colonizada. A multiplicidade de ecossistemas que coabitavam nela foram unificados sob alguns poucos habitats. A mata foi devastada, os recursos foram alocados em uma central de distribuição e a propriedade privada foi instaurada. Grandes condomínios foram erguidos sobre as ruínas da floresta. As empreiteiras por trás de tais obras enriqueceram e se tornaram gigantes mundiais: Google, Amazon, Facebook, Apple, Microsoft — as GAFAM. A experiência de andar na Internet, de conhecer a diversidade da floresta, de trocar coisas, foi substituída pela experiência de uma “cidade entre muros”. Nessa cidade, a Facebook construiu um mega empreendimento, misto de shopping e condomínio, “tipo Black Mirror”, onde as pessoas trabalham, interagem e se divertem, tudo sob a vigilância e de acordo com os objetivos da empresa. O autoengano é tanto que as pessoas parecem esquecer que podem sair de lá, que podem vaguear para fora dos muros. Quando saem, é para visitar outros empreendimentos da cidade: ir ao cinema Netflix, ver um show na arena Spotify, visitar a casa de swing da Tinder… ou qualquer outro tipo de experiência tutelada pelas empresas colonizadoras.

Ainda resta algo de floresta na Internet. As coisas continuam acontecendo nas margens da cidade. Porém, ao passo que os habitantes desse mundo abdicaram da racionalidade do comum e atualmente vivem e incentivam o império da propriedade privada — propriedade que nunca é dos usuários — , a floresta se vê cada dia mais cerceada. A experiência da troca, antes tão comum no mundo da Internet, foi criminalizada, desincentivada, substituída pelo consumo.

E assim, na Internet, a democracia da floresta foi devastada, o dinheiro foi introduzido como “meio”, e a oligarquia das plataformas se tornou o novo regime político.

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