María Inés Mudrovcic — Políticas do tempo, políticas da história: quem são meus contemporâneos?

João Pedro Garcez
31 min readAug 31, 2021

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“Nossa história não começa em 1988”. Acampamento indígena em Brasília reunido para protestar contra a tese do Marco Temporal, a ser votada no STF. Foto: Evaristo Sá/AFP

Original MUDROVCIC, María Inés. The politics of time, the politics of history: who are my contemporaries?, Rethinking History, 23:4, 456–473, 2019.

Tradução por João Pedro Garcez e Vicente Detoni.

Resumo: O artigo centra-se na noção de “políticas do tempo” de um ponto de vista performativo. Pretendo mostrar que a periodização é uma forma de agirmos no tempo. A primeira parte do artigo argumenta que, durante o século XIX, ‘contemporaneidade’ começou a ser entendida como ‘compartilhar o presente’. Concentro-me principalmente nos escritos de Taine e Tocqueville. Em seguida, mostro a pressuposição normativa subjacente à “questão da contemporaneidade / não contemporaneidade”. Finalmente, exploro suas consequências para uma concepção ocidental do presente.

Palavras-chave: políticas do tempo; contemporaneidade; presente; distância temporal; alteridade temporal

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Introdução

Em 10 de dezembro de 2016, o governo argentino criou o Ministério da Modernização, que tinha como um de seus objetivos “Desenhar, propor e coordenar as políticas de transformação e modernização do Estado”. Seu ministro disse que o governo argentino havia recebido um estado “arcaico”, típico do “século XIX”. Em artigo publicado pelo jornal El País em 6 de abril de 2017, o cientista inglês Richard Dawkins confessa abertamente o “desprezo” que “a mesquinhez moral, espiritual, política e intelectual dos britânicos que votaram a favor do Brexit no referendo” haviam provocado nele. Em uma tentativa de explicação quase-freudiana, Dawkins atribui o voto pró-Brexit dado por aqueles que ele chama de ‘“gerontobrexiters” (os velhos Brexiters) à nostalgia de uma “juventude perdida”. Na primeira edição do Heritage of our Times (Erbschaft dieser Zeit), publicado em 1935, Ernst Bloch examina o seu próprio presente na Alemanha. Ele afirma que nem a juventude da burguesia nem o campesinato estão “em sintonia com o estéril Agora”. A juventude “prefere voltar atrás do que passar pelo hoje a fim de chegar ao amanhã”, e o campesinato, ainda uma “casta”, está “fixado no antigo solo e no ciclo das estações” (1991 [1932], 97–103). Esses são apenas alguns exemplos do que chamarei de “políticas do tempo” neste artigo.

Em seu clássico de 1962, Quando dizer é fazer (How to do things with words), JL Austin propõe que a palavra “performativo” indica que “a emissão do enunciado é a execução de uma ação — normalmente ele não é pensado como apenas dizendo algo” (1962, 6–7). Em consonância com essa ideia, argumento que as distinções temporais entre presente, passado e futuro são distinções performáticas, ou seja, resultados de ações linguísticas realizadas no presente. Quando periodizamos, realizamos ações que não devem ser confundidas com apenas descrever o que é o tempo histórico. Ao periodizarmos, fazemos mais do que falar sobre o tempo: discriminamos, por exemplo, quem ou o que pertence ao passado ou ao presente. Seguindo a análise de Judith Butler a respeito da frase “palavras que ferem” usada por Mari Matsuda (1997), e a concepção de uma “linguagem opressora” que executa violência de Toni Morrison (1993), também irei abordar a questão de por que a periodização, principalmente em termos da contemporaneidade, deve ser vista como um discurso performativo. A periodização não é apenas uma representação do tempo, mas um ato de linguagem. Ser chamado de “não contemporâneo” representa seu próprio tipo de violência, expulsando algumas comunidades do presente.

Em 1983, o antropólogo Johannes Fabian (1983) tentou — por meio de uma operação linguística que ele chama de “alocronismo” — mostrar como o “outro” é construído na antropologia. Na mesma linha, o filósofo Peter Osborne (1995) denomina as formas de periodização ou distinções cronológicas entre movimentos e estilos culturais de “políticas dos tempos históricos”, as quais ele insere no contexto da literatura filosófica sobre o tempo produzida no mesmo período. Chris Lorenz e Berber Bevernage (2013) fazem o mesmo em relação à filosofia e à teoria da história, a fim de discutir as formas como essas disciplinas “negociam” entre o passado, o presente e o futuro. Além disso, em um livro publicado recentemente, Jacques Le Goff (2016 [2014]) refere-se à periodização histórica como o ato de “cortar o tempo em fatias”. Estas operações efetuadas sobre o tempo são o que eu pretendo definir com “políticas do tempo”.

Tais políticas de tempo são ações sobre o tempo, mais ou menos reconhecidas como tais, que constroem um “outro” excluindo-o do presente. Aquilo que está fora do presente é comumente chamado de anacrônico. Assim, na Argentina, o estado “moderno” se opõe ao estado “obsoleto e arcaico” herdado do passado. No Reino Unido, a arena política simplifica os resultados do voto do Brexit entre gerações, expulsando os eleitores pró-Brexit do presente como “velhos”, pessoas nostálgicas. Para Bloch, o campesinato pertence mais propriamente ao passado do que ao presente do mundo capitalista moderno. Os camponeses e os pequenos burgueses não são contemporâneos (‘Ungleichzeitigkeit’) do presente. O estado obsoleto, os idosos nostálgicos e o campesinato e a pequena burguesia são “anacrônicos” — eles estão fora do presente.

As políticas do tempo qualificam o passado, o presente e o futuro. É impensável um tempo cronológico meramente quantitativo que constitua parâmetro desinteressado e objetivo das atividades humanas. Além disso, mesmo que fosse concebível, seria o resultado dessas políticas do tempo. É importante ressaltar que ‘política’ não deve ser entendida aqui como um sinônimo de ideologia ou valores políticos, mas no sentido que Hayden White dá na expressão ‘a política de interpretação’: como ‘uma forma de autoridade’ (White 1987, 58) que, no caso específico do tempo, determina o que ou quem pertence ao presente.

As políticas do tempo consistem em um conjunto de operações que, ao sancionar o que é próprio ou característico do presente, constroem um ‘outro’, excluindo-o diacronicamente ou sincronicamente daquele presente. O outro é anacrônico. Mesmo que todos os eleitores do Brexit vivam no mesmo presente cronológico, nem todos “pertencem” a ele: aqueles que votaram a favor do Brexit são “relíquias do passado”. Da mesma forma, de acordo com funcionários do governo argentino, a atual estrutura do Estado não é adequada para o presente “moderno”. Bloch afirma a questão diretamente: “nem todas as pessoas existem no mesmo agora” (1991 [1932], 97). Mas a pergunta é por quê? Quais são as condições que permitem classificar o tempo histórico dessa forma? Para entender isso, pretendo explorar porque nada pode ser identificado como sendo exclusivamente ‘de seu tempo’. Mostrarei como essas políticas do tempo, como todas as ações, são realizadas no presente, levando a decisões sobre quem habita este presente, ou seja, decisões sobre quem são meus contemporâneos. O problema é por que discriminamos dessa maneira — por que criamos essas formas de alteridade temporal?

Contemporaneidade/não-contemporaneidade não é uma questão evidente. A seguir, tento repensar categorias que por muito tempo permaneceram intocadas nos campos da teoria e da filosofia da história. A maioria das contribuições teóricas para o problema da “contemporaneidade” e da “não contemporaneidade” são encontradas na crítica de arte e na teoria literária. No entanto, mesmo nessas contribuições, a “questão contemporânea” não foi relacionada ao tempo histórico. Expressões como “arte contemporânea” ou “literatura contemporânea” pressupõem o vínculo com um presente que assume uma concepção linear-cronológica do tempo. Não foi até muito recentemente que autores como Amelia Groom (2013) ou Burgess e Elias (2016), os fundadores da Associação para o Estudo das Artes do Presente, desafiaram essas noções de historicismo ao estabelecer uma conexão entre os estudos de arte contemporânea e novas temporalidades.

Neste artigo, abordo a ideia de políticas do tempo a partir de uma perspectiva heurística, isto é, como uma ferramenta — um instrumento ‘simples’ — que nos ajuda a compreender a forma como certos atos linguísticos no presente (des)constroem articulações entre passado e futuro. Quando acreditamos que algo que está cronologicamente presente já pertence ao passado, como afirmou Bloch, ou, ao contrário, quando um passado nos parece muito presente, ou quando pensamos que o futuro está fechado ou desconectado do presente, abre-se um interstício que nos permite questionar a experiência do presente como ‘naturalizado’, ‘dado’ ou ‘observado’. Nesse sentido, a noção de políticas do tempo nos permite questionar como estabelecemos os limites de nosso presente e criamos formas de alteridade temporal que são estranhas à mera simultaneidade cronológica.

Em primeiro lugar, pretendo mostrar como, no século XIX, a contemporaneidade passou a ser entendida como ‘compartilhar o presente’. Por este século e na Europa, o significado original derivado do termo latino cum tempore — “coexistindo ao mesmo tempo” — mudou. Para discutir isso, concentro-me principalmente nos escritos de Hippolyte Taine publicados entre 1828 e 1893, e Alexis de Tocqueville (1856). Em segundo lugar, pretendo mostrar os pressupostos que fundamentam a experiência do presente como contemporâneo. Discuto como o tempo universal é “espacializado” na adoção de um único meridiano global. Argumento que a introdução da norma neste quadro universal de tempo permite que seja feita uma distinção entre uma forma quantitativa (“distante”) e uma forma qualitativa (“atrasada”) de ser no tempo. A norma é o que Kathleen Davis chama de “uma posição específica — seja cultural, geográfica, econômica, política ou tecnológica”, que é a posição privilegiada “a partir da qual um ‘presente’ se torna apreensível” (2010, 823). A norma que une tempo e espaço é uma condição necessária para a criação da contemporaneidade como um tempo de referência que discrimina síncrona e diacronicamente. Finalmente, exploro algumas das consequências da concepção ocidental do presente como contemporâneo.

O presente e o contemporâneo

Qual é o presente? Quem o habita? Quem são meus contemporâneos? Tanto teóricos quanto filósofos da história têm abordado cada vez mais o problema do tempo histórico. No entanto, a questão do que é o presente ou qual é sua estrutura temporal raramente foi explorada (Bevernage 2016). Embora a noção de presente sempre faça parte da tarefa historiográfica e constitua um ponto cego para a história, ela passou a ocupar um lugar central apenas recentemente, sobretudo nas obras de François Hartog (2002) e Hans Ulrich Gumbrecht (2001). Considere, por exemplo, o livro clássico de Reinhart Koselleck, Futuro Passado, em que as duas categorias centrais são ‘espaço de experiência’ e ‘horizonte de expectativas’ e onde o presente parece ser reduzido a uma simples interseção ou articulação entre os dois, sem qualquer densidade. Passado e futuro têm sido tradicionalmente as duas categorias temporais que circunscreveram a história em detrimento do presente.

O tempo, como o Ser de Aristóteles, é expresso de muitas maneiras, e os europeus do século XIX vivenciaram seu próprio presente como contemporâneo. Ser contemporâneo era viver naquele novo presente que ocorreu após a Revolução Francesa, que foi vivido como a referência de tempo a partir da qual os ‘outros’ se diferenciavam tanto diacronicamente quanto sincronicamente.

O termo latino original cum tempore (“contemporâneo”) veio de cum e tempus, que significa acontecer ou viver no mesmo período de tempo. É assim que devemos entender frases como “Aristóteles foi contemporâneo de Platão e Alexandre” ou “Winston Churchill foi contemporâneo de Adolf Hitler”. Ou seja, “contemporâneo” é um adjetivo que relaciona eventos ou pessoas que ocorrem ao mesmo tempo. Esse sentido, que aparentemente é quase cronológico para o uso de contemporâneo como adjetivo e ainda está em uso, aparece na língua francesa por volta do ano de 1475 (Rousso 2012, 29). Um exemplo claro desse uso está no Pensée de Blaise Pascal, onde ele estabelece o princípio epistemológico de que se deve desconfiar de toda história que não foi escrita por aqueles que foram contemporâneos dos eventos narrados (Pascal 1963, 436–628).

No entanto, durante o século XIX, primeiro na França e depois no resto da Europa, consolidou-se outra forma de entender a contemporaneidade. O contemporâneo agora qualifica o presente. Ou seja, contemporâneos são aqueles que compartilham o presente pós-revolucionário. Contemporâneo não mais se referia apenas a uma mera sincronização temporal (coexistindo no mesmo tempo); na verdade, a sincronização é limitada ao presente das gerações “vivas” que habitavam a Europa e a América do Norte após a Revolução Francesa.

O século XIX francês assim definiu o seu presente, que chama de “contemporâneo”, ao estabelecer que a Revolução ergueu uma barreira entre o presente e o que foi chamado de “Antigo Regime”. A expressão Ancien Régime, conhecida pelos revolucionários franceses e popularizada por Alexis de Tocqueville em O Antigo Regime e a Revolução (1856) e Hippolyte Taine em Les origines de la France contemporaire, escrita entre 1828 e 1893, designa o ‘Regime Feudal’, um passado que, para esses autores, estava muito próximo no tempo, mas era considerado por ambos como já totalmente desaparecido. Para Tocqueville, o mero ato de cunhar esse nome abre um ‘abismo’ entre o passado pré-revolucionário e seu futuro: ‘Os franceses fizeram, em 1789, o maior esforço que já foi feito por um povo para rasgar sua história em duas partes, por assim dizer, e abrir uma lacuna entre seu passado e seu futuro” (ii).

A Revolução é o que separa o Antigo Regime desse presente concebido como totalmente diferente do passado. O tempo contemporâneo é aquele novo presente compartilhado pelos europeus que viveram após a Revolução Francesa. Tocqueville expressa essa ideia claramente: ‘Portanto, me pareceu que a maneira adequada de estudar a Revolução era esquecer, por um momento, a França diante de nós, para examinar, em seu túmulo, a França que nos deixou’ (1856, ii).

A França que Tocqueville tem pela frente pertence a um presente que se experimenta diferente do passado. É um presente que se distingue de seu passado como os vivos são dos mortos — o presente contemporâneo é compartilhado pelos vivos que olham para os mortos no túmulo do passado. Este passado que já se foi e está morto é o passado feudal do Antigo Regime, que “não está muito distante, em anos, de nossos olhos, mas que a Revolução esconde” (1856, ii). O presente desta “nova sociedade” (vi) é, portanto, transformado em uma passagem entre um passado acabado e um futuro em que, apesar de sua escuridão, algumas verdades podem ser discernidas.

Em Les origines de la France Contemporaine, Hippolyte Taine expressa também essa ideia da novidade com a qual o presente é vivido e que se autodenomina contemporâneo. Escrita entre 1875 e 1893, a obra é composta por cinco volumes organizados em torno de três temas: o Antigo Regime, a Revolução e o Regime Moderno. O que é a França contemporânea (contemporaine)? Taine faz essa pergunta no prefácio que precede o volume dedicado a uma discussão sobre o Antigo Regime. Para ele, é a França que substituiu, como um “inseto” em sua metamorfose, a velha França pela nova. O ‘novo ser’, a França contemporânea, é estável e completo porque

Sua antiga organização está dissolvida; ele arranca seus tecidos mais preciosos e cai em convulsões que parecem mortais. Então, depois de dores multiplicadas e uma letargia dolorosa, ele se reestabelece. Mas sua organização não é mais a mesma: pelo silencioso trabalho interior, um novo ser é substituído pelo antigo (1986, 13).

Durante os séculos XVII e XVIII, o corpo humano e a máquina foram os campos metafóricos dominantes para a comunicação de ideias sobre estruturas políticas e sociais. Durante o século XIX, as ciências naturais e o mundo natural tornaram-se centrais como campos metafóricos. A metáfora do inseto de Hippolyte Taine e a famosa metáfora dos botões de Georg W. F. Hegel no Prefácio de Fenomenologia do Espírito são exemplos dessa mudança. Convencido dos benefícios da ciência, Taine tinha certeza de que “as ciências naturais… serviriam como seu modelo para construir as leis da história humana” (Leroux 2017, 22). Para Taine, o presente contemporâneo da França pode ser compreendido quando se considera cronologicamente “a terrível e fecunda crise para a qual o Antigo Regime produziu a Revolução, e a Revolução o atual Regime” (1986, 14). A França contemporânea se transforma no lócus de um continuum temporal que é interpretado como evolutivo por meio da metáfora de um inseto que se desenvolve ao longo de uma representação linear do tempo. Um duplo movimento ocorre: uma ‘espacialização temporal’ quando Taine considera ‘para trás’ — o passado — as conquistas alcançadas pelo presente francês, e uma ‘temporalização espacial’ quando a França se compara, do ponto de vista do desenvolvimento político, com as nações que coexiste. Embora essas nações coexistam com a França, nem todas são “contemporâneas” a ela; algumas são ‘mais avançadas’, outras são ‘menos desenvolvidas’: ’Em torno dela, outras nações, algumas mais avançadas (précoces), outras menos desenvolvidas (tardives), todas com maior cautela, algumas com melhores resultados, tentam de forma semelhante uma transformação de um estado feudal para um estado moderno; o processo ocorre em todos os lugares e quase simultaneamente “(13).

A primeira foi a França, seguida pela Europa. Em outras palavras, aquilo que desde 1890 seria chamado de “Ocidente” começa a se tornar o padrão temporal pelo qual “medir” outras nações. Como um “naturalista” diante de um inseto, Taine explica a situação atual em que se encontra a França ao descrever as etapas que, do Antigo Regime à Revolução, levaram ao Regime Moderno. Ele começa com aquele período que, quase ‘na frente dos seus olhos’, está totalmente ‘desaparecido’. Já para Tocqueville, a Revolução interpõe uma barreira intransponível entre o passado desaparecido do Antigo Regime e a França contemporânea. É um passado que pertence apenas à “velha” França. Ao contrário do presente inacabado em que vive, o passado da Revolução e do antigo regime é “fechado e completo” (1986, 15). O presente contemporâneo afirma-se excluindo o passado. Os mortos pertencem ao passado.

Esse sentimento de ruptura com o passado, compartilhado não só pelos revolucionários, mas também pelos reacionários, se concretizou até na ação extrema de modificar o calendário. Esta forma de oposição do “presente contemporâneo” ao passado — um passado que a Assembleia Nacional de agosto de 1789 votou “para destruir completamente” — é inteiramente nova (Hunt 2008, 67). A velocidade com que o termo contemporâneo é imposto é, para Koselleck, um claro índice da consciência epocal com a qual o próprio tempo foi vivido (234).

Desta forma, a Revolução foi vivida como o limite ou dobradiça que separava o mundo dos vivos (os ‘Contemporâneos’) do mundo dos mortos do passado (o ‘Antigo Regime’). Os modernos, no entanto, experimentaram-se como estando em um “novo tempo” e opuseram seu presente a um passado que consideravam “antigo”, não “desaparecido” ou “morto”. A famosa disputa entre modernos e antigos que se desenvolveu no final do século XVII e no início do século XVIII expressou claramente essa ideia. Mesmo vivendo em um presente muito mais distante do passado que polemizavam, não o consideravam ‘morto’, mas ‘velho’. Este é o significado transmitido no Dicionário da Academia Francesa de 1694, que define o mundo moderno como ‘novo, recente, o que pertence ao último tempo. É oposto ao antigo’. Curiosamente, até a oitava edição do Dicionário, publicado entre 1932 e 1935, o moderno se opõe ao velho, ao antigo. Apenas na última edição, a nona, publicada em 1986, aparece uma noção histórica de que o termo “também é usado como distinto do Contemporâneo”. O mesmo se aplica à contemporâneo como adjetivo (contemporain-aine). Na nona edição, é usado para designar o tempo presente (no sentido expresso por Tocqueville e Taine). Nas edições anteriores, aparece com seu significado original de ‘compartilhar o mesmo tempo’ (Dicionário).

Quando a norma é introduzida no tempo

Para que os europeus do século XIX pudessem experimentar seu presente como contemporâneo, diferentes elementos tiveram que convergir. Primeiro, o tempo teve que ser considerado universal; isto é, foi necessário conceber a noção de que todos na Terra estão percorrendo um único esquema cronológico que é linear. Essa ideia de universalidade cronológica tem sua origem no século XVIII, quando Isaac Newton definiu o tempo absoluto como o único tempo ‘verdadeiro e matemático’ que ‘flui uniformemente sem relação com qualquer coisa externa.’ Este tempo universal, linear, cronológica e geograficamente mensurável é distinto, por exemplo, tanto do tempo universal de Jacques-Bénigne Bossuet, definido como a soma das partes, quanto do universal como um sistema na história mundial de Immanuel Kant.

No ‘Avant-Propos’ de seus Discours, Bossuet afirma que, assim como um mapa geral está relacionado a mapas particulares, o mesmo princípio rege a relação entre a história universal e a história de cada país e de cada povo (1996 [1681], 40). A universalidade do tempo na história é concebida por meio da metáfora da totalidade e da particularidade. Como é geralmente aplicável a um grande número de casos, diferentes cronogramas podem coexistir. De fato, quando Bossuet quer datar a conclusão do Templo de Salomão, ele menciona os ‘3000 anos do mundo, 488 desde a partida do Egito e, para ajustar os tempos da história sagrada com os do profano, os 180 desde a tomada de Tróia’ (58). O tempo sagrado universal não implica a adoção de uma única cronologia universal. Para Bossuet, dois contemporâneos (no sentido original do latim cum tempore) não vivem necessariamente no mesmo tempo. Ao referir-se aos ‘mundos medievais’, Alain de Libera expressou claramente essa ideia quando afirmou que ‘a Bagdá do terceiro século da Hégira e a Aix do século IX da era cristã são contemporâneas, mas não estão nem no mesmo tempo, nem no mesmo mundo, ou na mesma história’. Para o historiador da filosofia medieval, há “uma multiplicidade de durações: uma duração latina, uma duração grega, uma duração árabe-muçulmana, uma duração judaica” (2000, 15–16). Cada mundo cultural tem seu próprio tempo peculiar. Uma multiplicidade de tempos coexistiu na Europa medieval, coexistindo também com os tempos particulares dos povos americanos ou africanos, com os quais não interagiam.

Na mesma linha, Jeffrey Jerome Cohen sugere que repensar a própria temporalidade de uma perspectiva pós-colonial nos permitiria evitar caracterizar a Idade Média como um “campo de alteridade indiferenciada contra o qual a Modernidade emergiu” (2001, 4). Isso permitiria aos medievalistas

deslocar o domínio do cristianismo … isso significa mais trabalho não apenas sobre as culturas islâmicas, judaicas e não-cristãs, tanto em sua relação com o cristianismo … mas também o alijamento de narrativas de progresso que falam de eras ‘pré-cristãs’ e do ‘triunfo do cristianismo’(7).

A crítica de Kathleen Davis à caracterização de Reinhart Koselleck da Idade Média aponta para a mesma questão. A análise de Koselleck do famoso Alexanderschlacht de Albrecht Altdorfer exemplifica para Davis a leitura linear e errônea que Koselleck propõe da “era pré-moderna” com seu “senso não temporalizado de tempo e falta de consciência histórica” (2004, 51–63).

A ausência de um único esquema cronológico também está presente na concepção de história universal explorada por Immanuel Kant, em 1784, em Ideia de uma história universal de um ponto de vista cosmopolita. O universal é o plano ou sistema da natureza que se desdobra sistematicamente em diferentes tempos ou estágios, e o filósofo o descobre na multiplicidade de absurdos das coisas humanas (1970, 41–53). Embora Kant não o explique, essa ideia de universal também pode coexistir em múltiplas formas temporais em diferentes culturas.

No entanto, o presente vivido como contemporâneo pelas experiências do século XIX pressupõe um tempo universal que é incompatível com a convivência com outros possíveis quadros temporais. O presente contemporâneo é transformado no ‘agora’ de um único período de tempo em que todos os eventos adquirem uma posição. O continuum temporal pode viajar do passado para o presente ou do presente para o passado. Embora o conceito de Isaac Newton de tempo absoluto como “um tempo que é universal, contínuo e completamente sem dependência de qualquer regularidade natural” (Wilcox 1987, 16–17) tenha existido no Ocidente a partir do século XVII, foi necessário concebê-lo como atravessando todos as regiões do nosso planeta. Essa ideia ganhou forma concreta em 1884 em Washington D.C. durante a ‘Conferência Internacional do Meridiano’, com a presença de 41 delegados de 24 nações: o ‘mundo geográfico’ foi dividido em 24 fusos horários, e o primeiro meridiano foi atribuído a Greenwich (Inglaterra). Entre muitos princípios da Conferência, foi estabelecido que “era desejável adotar um único meridiano global para substituir os muitos que coexistem e que todos os países deve adotar um dia universal” (Meridian Conference 1884). O tempo universal era ‘espacializado’, abrangendo todo o planeta. Mesmo que nem todos os países tenham aceitado isso, o que resultou em uma luta pelo poder entre eles para impor um quadro temporal único (Hunt 2013, 205), a introdução de um padrão cronológico para todo o mundo era uma condição não apenas para a possibilidade de criação de um único “caminho” de e para o presente, mas também para conceber um simultaneidade temporal universal. A metáfora de “distância temporal” poderia assim ser concebida em termos quantitativos, como quando dizemos que o passado “se afasta” do presente. Chris Lorenz (2014, 46) expressa essa ideia de uma distância temporal quantitativa em relação à história também:

Os historiadores pressupõem que o passado “vai embora” e está, portanto, distante e ausente do presente. Em outras palavras: os historiadores pressupõem que o presente quente se “esfria” e se transforma em um passado frio por si só. É o processo em que ambos os interesses e as paixões dos Zeitzeugen (testemunhas oculares) literalmente morrem, e os “distantes” historiadores profissionais assumem, armados com suas críticas métodos e sua busca “imparcial” por “objetividade”.

A relação que o historiador estabelece entre o passado “distante” e objetividade pressupõe que a metáfora da distância temporal seja entendida quantitativamente. A adoção de um tempo geográfico universal não necessariamente requer a negação da pluralidade de tempos diferentes. O tempo geográfico universal pode coexistir com uma pluralidade de épocas culturais peculiares. Pode-se medir a distância quantitativa entre o “agora” do historiador e o passado em relação ao tempo geográfico universal, sendo este tempo independente de todos tempos culturais. No entanto, quando o meridiano global foi adotado, o sistema de datação ocidental a. C./d. C. e o tempo absoluto newtoniano foram impostos em todo o mundo: “O mesmo sistema de datação pode localizar tais […] eventos como a batalha de Maratona, o período em que as pessoas se engajaram na agricultura pela primeira vez, e até mesmo o época em que a vida na terra começou” (Wilcox 1987, 7).

Em segundo lugar, se o tempo é concebido como linear e universal, a determinação temporal de um “presente contemporâneo” deve ser realizado em relação à totalidade do próprio continuum temporal. Organizando épocas por meio de sucessão dinástica ou considerando, por exemplo, metais ou livros sagrados, significa determinar o tempo por meio de qualidades que expressam as características de um período e que de forma alguma dependem de um único esquema temporal. A perfeição das artes e da ‘grandeza’ do espírito humano são qualidades que permitem a François-Marie Voltaire (1954 [1751], 7) selecionar apenas “quatro séculos na história do mundo”, entre os quais o século de Luís XIV é o “mais feliz” de todos. Para Voltaire, o século de Luís XIV é o “mais iluminado que já existiu”. A característica “perfeição das artes e grandeza do espírito humano” é o que determina para Voltaire a seleção desses séculos e não de outros. Se a determinação temporal for diferente, por exemplo, separados por dinastias ou pela ‘barbárie dos povos’, então, a seleção dos tempos ou períodos também mudaria. Como Donald J. Wilcox afirma: “os eventos criaram seus próprios prazos. Antes de localizar um evento no tempo, o historiador teve que fazer julgamentos sobre seu significado e sua relação temática com outros eventos” (1987, 9). Em contraste, ‘contemporaneidade’ é uma peculiaridade que os próprios europeus experimentam quando se colocam em relação a um quadro temporal, a partir do qual eles determinam um passado que se foi e está morto e vivenciam seu presente como um “novo tempo”. A determinação temporal não é independente do continuum temporal. A novidade do contemporâneo pode só ser experimentado como tal quando relacionado a outros períodos que o precedem e do qual é diferente. Contemporaneidade, quando transformada em conceito de época, pressupõe uma matriz temporal linear universal na qual está posicionada como o último dos períodos. Em contraste, a ‘Era de Luís XIV’ no sentido de Voltaire, por exemplo, é uma unidade em si; ao caracterizar este período, não é necessário que se leve em consideração nem o passado (o século de ‘Filipe e Alexandre’ ou ‘César e Augusto’) ou o futuro. O presente contemporâneo necessariamente discrimina o ‘antes’ e o ‘depois’; ou seja, ele discrimina diacronicamente. A pressuposição da universalidade do tempo e da determinação temporal “espacializa” o tempo em um antes e um depois. O passado dos mortos está “atrás” do presente contemporâneo.

No entanto, se considerarmos a matriz de tempo linear geográfica e universal, nem todos aqueles que coexistiram ou viveram simultaneamente com os europeus do século XIX são seus contemporâneos. A contemporaneidade não se define apenas em relação com o contínuo temporal universal de antes e depois, mas também através de uma terceira conceituação. Ela discrimina no mesmo presente: nem tudo que coexiste no presente é contemporâneo. Nem todos os contemporâneos compartilham o mesmo presente cronológico. Ser contemporâneo no século XIX significa pertencer a uma classe homogênea cuja característica é ter deixado para trás um passado feudal. Contemporâneos são aqueles que habitam o estado moderno. O estado moderno é a norma política que permite a discriminação de “outros” no presente e no passado. Os ‘outros’ são aqueles que vivem sob outras normas políticas (“primitivos” ou os camponeses de Ernst Bloch, por exemplo).

Tomar o estado moderno como norma permite traçar uma discriminação ainda maior, entretanto: uma discriminação retrospectiva. O passado pertence apenas aos mortos que têm contribuído para alcançar o Estado Moderno. É por isso que existem pessoas ‘sem história’; embora esses povos tenham habitado o passado, seu passado não contribuiu para chegar ao presente contemporâneo.

As outras nações que coexistiram ou foram cronologicamente simultâneas à França e à Europa do século XIX, ou seja, o ‘Ocidente’, podem não ter sido seus contemporâneos. No século XIX, ser “contemporâneo” e “ocidental” eram os dois lados da mesma moeda (a cronopolítica e a geopolítica). Como Taine afirma claramente, embora o surgimento do estado moderno seja quase universal e simultâneo, existem povos que são “menos desenvolvidos” porque não abandonaram a forma feudal de governo. A contemporaneidade não apenas reconfigura o passado, expulsando-o para trás como “feudal e morto” (discriminação diacrônica), mas também reconfigura o presente, diferenciando entre aqueles que não são meus contemporâneos por não compartilharem a mesma norma político-cultural (discriminação sincrônica). Nem todos aqueles que vivem no mesmo tempo, que são coevos, são contemporâneos. Uma norma política é introduzida em um quadro temporal geográfico universal. Simultaneidade vital ou coevalidade temporal não garantem contemporaneidade político-cultural. A introdução de uma norma política em um tempo linear, geográfico e universal necessariamente produz uma dessincronização qualitativa.

A experiência marcante da contemporaneidade nasceu no século XIX a partir da exclusão daqueles que não compartilham o mesmo presente político. A exclusão ocorre necessariamente porque a contemporaneidade não só cria uma relação temporal, mas também resulta em uma decisão normativa, uma política de tempo. O anacronismo norteia essa ação de exclusão que toma lugar no presente contemporâneo e gera uma alteridade temporal qualitativa. A introdução da norma serve para distinguir entre todos contemporâneos, isto é, entre contemporâneos e não contemporâneos que vivem simultaneamente no presente cronológico, e serve para discriminar sincronicamente. O “estado moderno” do século XIX é a referência normativa que distingue os contemporâneos dos “outros”. Da mesma forma, uma vez que todos existem em uma única matriz temporal universal, geográfica e linear, a posição ocupada no ‘espectro’ é concebida em termos de ‘distância’: os ‘outros’ são mais ou menos ‘atrasados’ (Resto) em relação ao moderno estado contemporâneo (Ocidente)¹. Sebastian Conrad expressa esta metáfora espacial qualitativamente com referência ao Japão pós-guerra:

O Japão e a Europa diferiam não em termos de realizações, mas em termos de tempo. Não haveria nada paradoxal, portanto, quando Otsuka comparou o Japão do pós-guerra com Sociedade inglesa no século XVI… Em certo sentido, o Japão em 1945 foi atrasado por três a quatro séculos. Este topos de “atraso” (em sentido temporal) foi quase onipresente no discurso histórico do Japão do pós-guerra (1999, 74).

A metáfora da distância temporal qualitativa (ser mais velho ou viver em um fase anterior) só é possível quando uma norma é transformada na base da fundação ou referência de uma matriz temporal geográfica universal. A distância temporal quantitativa (estar distante ou próximo no tempo) e a distância temporal qualitativa (sendo “atrasado” em relação à norma) só são possíveis com a adoção de um esquema de tempo universal único no qual a norma é introduzida. Só a norma pode transformar o tempo humano em um tempo de referência. Tempo e espaço se confundem com a norma.

O presente contemporâneo exclui o passado como “outro”: o “passado histórico” é o resultado desta operação anacrônica diacrônica. No entanto, o presente contemporâneo também exclui “outros” que vivem no mesmo presente cronológico: não contemporâneos são os “outros” nesta operação anacrônica sincrônica.

As disciplinas do anacrônico: os mortos e os selvagens

O presente contemporâneo se distingue e se separa não apenas do passado, mas também daqueles outros que, vivendo no presente, não compartilham o mesmo estágio político. A antropologia e a história foram estabelecidas como campos de conhecimento no final do século XVIII e tornaram-se ‘profissionalizadas’ durante o século dezenove. O presente contemporâneo cria dois tipos de alteridade, a que correspondem dois gêneros de conhecimento com seus respectivos objetos. O selvagem é aquele que não está apenas geograficamente fora da Europa Ocidental, mas também atrasado no tempo; ele não é contemporâneo, mas um primitivo. A distância entre o selvagem primitivo e uma pessoa civilizada e contemporânea é ligada pela antropologia. Johannes Fabian (1983) produziu um valioso trabalho sobre este assunto. A história, por sua vez, constrói uma ponte entre os mortos e um presente que se entende como novo.

O conhecimento histórico está baseado na diferença que o presente estabelece com o passado. Na medida em que o passado é o “outro” do presente, o acesso a ele deve mudar. Traços que se tornam fontes substituem o testemunho e a tradição oral, que são exemplos de conhecimento imediato (Rousso 2012, 47). A distinção que o presente contemporâneo faz com o passado tem a mesma consequência que a astronomia teve na concepção da ciência durante os séculos dezesseis e dezessete séculos. Que a terra se move ou que o sol tem manchas não é conhecimento que podemos adquirir diretamente. Podemos acessar essas “verdades” do mundo apenas através de cálculos, medições ou instrumentos. O mundo “real” é estranho para nossos sentidos, para todo conhecimento imediato. A natureza é inacessível à observação direta. O mesmo ocorre com o passado. Quando excluído do presente, o passado não pode ser conhecido diretamente. A testemunha perde a relevância que tinha para Heródoto. No entanto, até a modernidade, o presente não diferia do passado. Os historiadores derivaram sua demarcação de sua própria subjetividade: “enquanto isso”, ‘no meu tempo’, ‘antes’ e assim por diante. A partir do século XIX, a perspectiva do passado do historiador tornou-se independente da perspectiva de aqueles que viveram naquela época. O passado é tão diferente do presente que é acessível apenas por meio de fontes.

Como Hannah Arendt observa, as duas palavras gregas istoría e eidenai, que significam ‘conhecer’, deriva da raiz íd, ‘ver’, e istor originalmente significava ‘testemunha ocular’. É por isso que historien tem o duplo significado de “dar testemunho” e “investigar”. Heródoto usou o termo em seu duplo sentido, como testemunho e investigação. O testemunho implica afirmações verdadeiras sobre os fatos que foram contemplados e se estabeleceu como garantia de ‘o que aconteceu’, ajudando a distinguir a história do mito. No final do século XVII, quando a distinção entre ‘evidência primária’ e ‘evidência secundária’ foi firmemente estabelecida por antiquários, o testemunho — redefinido como ‘primário’ ou evidência ‘original’ — perdeu seu status de fiador do passado real (Mudrovcic 2007). Com efeito, as palavras de uma testemunha são transformadas em “evidência original” do passado quando o historiador pode estabelecer a verdade do que é afirmado por meio de outros métodos. O testemunho por si só não é garantia do que ocorreu; em vez disso, é o historiador que lhe dá essa estatura, transformando-o em evidência ou evidência do passado. No século XIX, esta distinção entre evidência primária e secundária desaparece, deixando apenas o conceito de evidência histórica como “vestígios existentes de situações passadas uma vez presentes, mas agora perdidas para sempre” (Ritter 1986, 144). O passado, portanto, mostra toda a sua alteridade com o presente e só pode ser recuperado por meio desses vestígios: “os fatos do passado só podem ser conhecidos através dos vestígios que foram preservados”. O passado assim reconstruído é o passado histórico, a contrapartida do presente contemporâneo. Assim como o mundo “real” não é acessível a nós, exceto por meio da ciência, o mesmo ocorre com o passado. A noção do princípio de objetividade da história repousa nesta distinção entre o passado e presente. Somente do passado o historiador pode pretender ter um conhecimento objetivo e, por isso, deve separar-se de sua própria contemporaneidade. Seu próprio presente é enganoso e inseguro para o historiador. O presente é o âmbito da ação, da política: ‘O olhar que temos sobre as questões atuais está sempre embaraçado com nossos interesses pessoais, preconceitos ou paixões… Mas se nosso olhar está no passado, nosso olhar é mais calmo e seguro ‘(Fustel de Coulanges 1983 [1893], XV). A história se exclui do estudo do presente contemporâneo, deixando este campo para a antropologia, sociologia e jornalismo.

Conclusão

J. L. Austin distingue o ato locucionário do ato ilocucionário. O ato de dizer algo é diferente do ato realizado ao dizer algo que organiza ou classifica o tempo, isto é, se digo, ‘estes são meus contemporâneos’, naquele momento, estou discriminando aqueles “outros” que pertencem ao passado ou que não são percebidos como meus contemporâneos, embora compartilhem meu presente cronológico. Por fim, Austin também identifica o ato perlocucionário, ou seja, o ato realizado porque algo é dito: aqueles que não são considerados ‘contemporâneos’ podem sentir vergonha por não o ser, ou ainda ações podem ser tomadas para que não contemporâneos se tornem contemporâneos, e assim por diante. Ao analisar a frase ‘palavras que ferem’ usada por Mari Matsuda et al. (1993) do ponto de vista de Austin, Judith Butler afirma que os atos de fala fazem o que eles dizem enquanto são falados: “[eles] trabalham na medida em que são dados na forma de um ritual, isto é, repetidos no tempo… o ato de fala ilocucionário realiza sua ação no momento do enunciado’ (1997, 3). Quando nós tratamos alguém como um não-contemporâneo, estamos expulsando ele ou ela do presente, e pessoas não-contemporâneas sofrem desorientação temporal. Nas palavras de Butler: ‘Exposto no momento de tal quebra está precisamente a volatilidade do “lugar” de alguém na comunidade. . . tal lugar pode não ser lugar ‘ (3). Na mesma linha, Toni Morrison se refere a “linguagem opressiva” em seu Discurso do Prêmio Nobel. Tal linguagem ‘faz mais do que representar violência; isto é violência” (1993, 16). A periodização não é apenas uma representação do tempo; ela é fazer coisas com o tempo. Nos termos binários ‘contemporâneo/não contemporâneo’, a periodização constitui um ato linguístico nocivo.

Em 2006, a Revista History & Theory publicou uma edição especial sobre o presente, na qual muitos autores tratam o passado como presença, como um passado disponível para nós. Este pode ser considerado outro exemplo de como agir sobre o tempo, desfocando e sacudindo a linearidade do tempo. Lidar com a ‘questão do contemporâneo/não contemporâneo’ é outra maneira de lidar com a questão que Dipesh Chakrabarty colocou em seu artigo ‘Onde está o agora?’ [Where is the now?] (2004). O ‘contemporâneo’ é uma maneira de imaginar o ‘agora’ por meio de lentes eurocêntricas. Valores hegemônicos são pressupostos na “caixa de ferramentas” temporal que a “contemporaneidade” usa para organizar o tempo. ‘Pessoas não-contemporâneas’ são, então, aquelas que não satisfazem a norma principalmente porque não são cidadãos de um Estado moderno ocidental, sendo esta a principal razão para ser expulso do presente. Tal ato constitui discriminação negativa.

Por que os camponeses que vivem na mesma ordem cronológica que os outros cidadãos são ejetados para o passado? Dizer, como Ernst Bloch afirma, que “eles carregam um elemento anterior com eles” é ligá-los a uma linha cronológica enquanto localiza-os “para trás” em um presente que é suposto ser “para a frente”. O historicismo é o ovo da serpente. O desafio é pensar na “sincronicidade do assíncrono”, sem qualquer norma, apenas atendendo à pluralidade dos tempos culturais. Só assim teremos acesso a um tempo globalizado não-discriminatório, o qual realmente precisamos.

Ambos os significados do contemporâneo foram preservados no presente: aquele derivado do termo latino (‘coexistem ao mesmo tempo’) e aquele nascido no século XIX (‘compartilhar o mesmo presente’). Como Berber Bevernage (2016) afirmou em artigo publicado recentemente nesta revista, a ideia de contemporaneidade do presente histórico não é natural nem um “dado inegável”, mas um “constructo sociocultural” porque, isto deve ser adicionado, agimos sobre o tempo. Meu objetivo neste artigo foi mostrar que este conceito sociocultural, em seu segundo sentido, é resultado de uma determinada política de tempo, ou seja, que ser contemporâneo é o resultado de ações realizadas no presente que excluem outros dele.

Não importa se o ‘outro’ coexiste no mesmo presente cronológico (o primeiro significado do contemporâneo), porque o ‘outro’ não pertence ou compartilha meu presente — principalmente porque uma norma política é introduzida em um período de tempo universal que foi espacializado na adoção de um único global meridiano. Tomados em conjunto, esses atos — essas políticas do tempo — produzem ou realizam uma alteridade temporal. Essas suposições raramente são levadas em consideração, mas elas fazem parte da nossa experiência de vida. Elas nos permitem entender que para o atual governo argentino, o estado é obsoleto, ou que aqueles que votaram a favor do Brexit ou do campesinato e da pequena burguesia de Bloch não pertencem ao presente.

O desconforto sentido por Johannes Fabian (1983) ao notar que o antropólogo, ao usar termos como primitivo ou selvagem, nega outras culturas a contemporaneidade sociocultural do antropólogo, não se resolve pelo reconhecimento de um ‘tempo intersubjetivo compartilhado’. Mesmo que, por razões tecnológicas e práticas, o cotidiano neste mundo globalizado tenha levado à adoção de uma cronologia mundial, reconhecer uma temporalidade heterogênea por razões culturais teria sido possível. Podemos imaginar um tempo cronológico universal desconectado de vários tempos culturais. O problema surge quando uma dimensão normativa — mais apropriada aos mundos culturais — é introduzida neste quadro universal de tempo geográfico. É neste ponto que aqueles que compartilham a norma se distinguem dos “outros”. O valor ou norma pode ser o ‘estado moderno’ (como era no século XIX), ‘secularismo’, ‘democracia’ (o que quer que seja entendido por essa palavra) ou simplesmente “ser branco” (caso contrário, não faz sentido a cultura dos cidadãos mapuches argentinos ou a burca dos cidadãos franceses muçulmanos, por exemplo, serem consideradas “atrasadas”). Ser contemporâneo não é algo que tem a ver meramente com o compartilhamento de um tempo presente; também está relacionado a um compartilhamento de normas consideradas melhores do que aquelas do ‘outro’ que coexistem no presente, em um tempo universal ‘fingido’, que marca os mesmos horários para todos os que habitam a terra.

Concordo com Ewa Domanska (2010) e Zoltan B. Simon (2019) que teorias da história têm que abordar “os problemas globais de nossos próprios tempos” (Simon 2019, 65). Uma teoria da história que tenta lidar com o presente, repensar categorias que nos ajudam a ‘viver juntos em conflito’ (Domanska 2010, 126) sem introduzir categorias que nos dividam ainda mais, é uma tarefa que vale a pena empreender. Naturalizamos categorias como o “contemporâneo” e “contemporaneidade”, sem atender às suas subjacentes normas pressupostas. Um bom esforço intelectual envolveria desmascarar o historicismo de tais categorias, bem como o locus hegemônico de onde eles são pronunciados. Eles organizam o tempo em caixas que não são para todos.

Notas de tradução

¹ Neste momento a autora faz um trocadilho, cujo significado se expressa da melhor forma apenas em inglês, entre o termo que designaria o Ocidente (“The West”) e um outro possível termo (um neologismo da autora) que designaria outras partes do mundo concebidas como seu “outro”: o Resto (em inglês, “The Rest”).

María Inés Mudrovcic é Professora Titular de Filosofia da História no Departamento de História e Filosofia da Universidade de Comahue (Argentina). É Diretora do Centro de Pesquisa de Filosofia das Ciências Sociais e Humanidades e Membro Titular do Conselho do Instituto de Pesquisa Patagônico de Ciências Humanas e Sociais, da Universidade Nacional de Comahue e é a principal pesquisadora do CONICET (Conselho Nacional de Estudos Científicos e Tecnológicos). Publicou “Voltaire, el Iluminismo y la Historia” (Buenos Aires: Fundec, 1996), “Historia, Narración y Memoria. Los debates actuales en filosofía de la historia” (Madrid: Akal, 2005), e editou “Pasados recientes en conflito. Representación, mito y política” (Buenos Aires: Prometeo, 2009) e co-editou “En busca del tiempo pasado. Temporalidad, historia y memoria” (México: Siglo XXI, 2013). Ela escreveu uma variedade de artigos em diferentes periódicos de filosofia e teoria da história.

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