Franco “Bifo” Berardi — Crônica da psicodeflação
O inesperado transforma o que a vontade não foi capaz de transformar. Mas agora é uma questão de reativar a energia renovável da imaginação

You are the crown of creation
And you’ve got no place to go
[És a coro(n)a da criação
e não tem para onde ir.]
(Jefferson Airplane, 1968)
“A palavra agora é um vírus. O vírus da gripe pode ter sido uma célula pulmonar saudável. Agora é um organismo parasitário que invade e danifica o sistema nervoso central. O homem moderno perdeu a opção do silêncio. Tente interromper a fala subvocal. Tente alcançar até dez segundos de silêncio interior. Você encontrará um organismo resistente que o força a falar. Esse organismo é a palavra.
(William Burroughs: The ticket that exploded)
21 de fevereiro
Voltando de Lisboa, uma cena inesperada no aeroporto de Bolonha. Na entrada, há dois seres humanos completamente cobertos por um traje branco, com um capacete luminescente e uma ferramenta estranha nas mãos. A ferramenta é uma pistola com um termômetro de alta precisão que envia luzes violetas por toda parte.
Eles se aproximam de cada passageiro, o detêm, apontam a luz violeta na testa, verificam a temperatura e depois o soltam.
Um pressentimento: estamos atravessando um novo limiar no processo de mutação tecno-psicótica?
28 de fevereiro
Desde que voltei de Lisboa, não pude fazer mais nada: comprei cerca de vinte telas de pequenas proporções e as pintei com cores de tinta, fragmentos fotográficos, lápis, carvão. Não sou pintor, mas quando estou nervoso, quando sinto que algo está acontecendo que coloca meu organismo em vibrações dolorosas, para relaxar, começo a rabiscar.
A cidade está silenciosa como se fosse meados de agosto. As escolas estão fechadas, os cinemas fechados. Não há estudantes por perto, não há turistas. As agências de viagens excluem regiões inteiras do mapa. As recentes convulsões do corpo planetário talvez estejam causando um colapso que obriga o organismo a parar, a desacelerar seus movimentos, a abandonar os lugares lotados e a frenética negociação diária. E se esse fosse o caminho que não pudéssemos encontrar, e agora ele vem na forma de uma epidemia psíquica, um vírus linguístico gerado por um bio-vírus?
A Terra atingiu um grau de extrema irritação, e o corpo coletivo da sociedade está em um estado de estresse intolerável: a doença se manifesta neste momento, modestamente letal, mas devastadora no nível social e psíquico, como uma reação de autodefesa da Terra e do corpo planetário. Para os mais jovens, é apenas uma influência irritante.
O que causa pânico é que o vírus escapa ao nosso conhecimento: a medicina não o conhece, nem o sistema imunológico o conhece. E o desconhecido de repente para a máquina. Um vírus semiótico na psicosfera bloqueia o funcionamento abstrato da economia, porque tira dela seus corpos. Você quer ver?
2 de março
Um vírus semiótico na psicosfera bloqueia o funcionamento abstrato da máquina, porque os corpos desaceleram seus movimentos, finalmente renunciam à ação, interrompem a reivindicação do governo sobre o mundo e deixam o tempo retomar seu fluxo no qual nadamos passivamente, segundo a técnica de natação chamada “fingindo de morto”. Nada engole uma coisa após a outra, mas, entretanto, a ansiedade de manter o mundo unido, que o mantinha assim, se dissolveu.
Não há pânico, não há medo, mas silêncio. A rebelião se mostrou inútil, então vamos parar.
Quanto tempo o efeito dessa fixação psicótica que levou o nome de coronavírus vai durar? Eles dizem que a primavera matará o vírus, mas, pelo contrário, poderá melhorá-lo. Não sabemos nada sobre isso, como podemos saber qual temperatura prefere? Não importa o quão letal é a doença: parece modesta, e esperamos que ela se dissolva em breve.
Mas o efeito do vírus não é tanto o número de pessoas que enfraquece ou o número muito pequeno de pessoas que mata. O efeito do vírus está na paralisia relacional que se espalha. A economia mundial há muito tempo encerrou sua parábola expansiva, mas não podíamos aceitar a ideia de estagnação como um novo regime de longo prazo. Agora, o vírus semiótico está nos ajudando a fazer a transição para a imobilidade.
Você quer ver?
3 de março
Como reage o organismo coletivo, o corpo planetário, a mente hiperconectada sujeita por três décadas à tensão ininterrupta da competição e à hiperestimulação nervosa, à guerra pela sobrevivência, à solidão metropolitana e à tristeza, incapaz de libertar-se do vício que lhe rouba a vida e a transforma em estresse permanente, como um viciado em drogas que nunca consegue alcançar a heroína que até dança diante de seus olhos, submetido à humilhação da desigualdade e da impotência?
Na segunda metade de 2019, o corpo planetário entrou em convulsão. De Santiago a Barcelona, de Paris a Hong Kong, de Quito a Beirute, multidões de jovens corriam para a rua, milhões, furiosamente. A revolta não tinha objetivos específicos, ou melhor, tinha objetivos contraditórios. O corpo planetário foi tomado por espasmos que a mente era incapaz de guiar. A febre cresceu até o final do ano dezenove.
E então Trump mata Soleimani, sob o fogo de seu povo. Milhões de iranianos desesperados saem às ruas, choram, prometem uma vingança incrível. Nada acontece, eles bombardeiam um pátio. Em pânico, eles derrubam um avião civil. E assim Trump ganha tudo, o gosto por ele aumenta: os americanos ficam animados quando vêem sangue, os assassinos sempre foram os seus favoritos. Enquanto isso, os democratas começam as primárias em um estado de tal divisão que apenas um milagre poderia levar à nomeação do bom velho Sanders, a única esperança de uma vitória improvável.
Então, nazi-trumpismo e miséria para todos e crescente superestimulação do sistema nervoso planetário. Essa é a moral da história?
Mas aqui está a surpresa, a reversão, o inesperado que impede qualquer discurso sobre o inevitável. O inesperado que estávamos esperando: a implosão. O organismo superexcitado da humanidade, após décadas de aceleração e frenesi, depois de alguns meses de convulsões gritantes sem perspectivas, fechado em um túnel cheio de fúria de gritos e fumaça, é finalmente atingido pelo colapso: uma gerontomaquia que mata principalmente os octagenários, mas bloqueia, peça por peça, a máquina global de excitação, frenesi, crescimento, economia …
O capitalismo é um axiomático, ou seja, trabalha com base em uma premissa não comprovada (a necessidade de crescimento ilimitado que possibilita a acumulação de capital). Todas as concatenações lógicas e econômicas são consistentes com esse axioma, e nada pode ser concebido ou tentado fora desse axioma. Não há saída política do axiomático do capital, não há linguagem capaz de falar fora da língua, não há possibilidade de destruir o sistema, porque todo processo linguístico ocorre dentro daquele axiomático que não possibilita declarações extra-sistêmicas efetivas. A única saída é a morte, como aprendemos com Baudrillard.
Somente após a morte alguém pode começar a viver. Após a morte do sistema, organismos extra-sistêmicos poderão começar a viver. Desde que eles sobrevivam, é claro, e não há certeza sobre isso.
A recessão econômica que está se preparando pode nos matar, provocar conflitos violentos, desencadear epidemias de racismo e guerra. É bom saber. Não estamos culturalmente preparados para pensar na estagnação como uma condição de longo prazo, não estamos preparados para pensar na frugalidade, no compartilhamento. Não estamos preparados para dissociar o prazer do consumo.
4 de março
Este é o momento certo? Não sabíamos como nos livrar do polvo, não sabíamos como sair do cadáver do Capital; viver nesse cadáver contaminava a existência de todos, mas agora o choque é o prelúdio para a deflação psíquica definitiva. No cadáver do Capital, fomos forçados à superestimulação, à aceleração constante, à concorrência generalizada e à superexploração com salários decrescentes. Agora o vírus esvazia a bolha de aceleração.
O capitalismo estava há muito tempo em um estado de estagnação irremediável. Mas ele continuou cutucando os animais de carga que somos, para nos forçar a continuar correndo, mesmo que o crescimento tivesse se tornado uma miragem triste e impossível.
A revolução não era mais concebível, porque a subjetividade está confusa, deprimida, convulsiva e o cérebro político não tem mais nenhum controle sobre a realidade. Então aqui está uma revolução sem subjetividade, puramente implosiva, uma revolta de passividade, de resignação. Renunciar. De repente, isso parece um slogan ultra-subversivo. Chega da agitação inútil que deveria melhorar e, em vez disso, produz apenas uma deterioração na qualidade de vida. Literalmente: não há mais o que fazer. Então não façamos.
É improvável que o organismo coletivo se recupere desse choque psicótico-viral e que a economia capitalista agora reduzida a estagnação irremediável retome sua jornada gloriosa. Podemos afundar no inferno de uma detenção tecno-militar para a qual apenas a Amazon e o Pentágono têm as chaves. Ou podemos esquecer a dívida, o crédito, o dinheiro e a acumulação.
O que a vontade política não pôde fazer, poderia ser feito pela potência mutagênica do vírus. Mas essa fuga deve ser preparada imaginando o possível, agora que o imprevisível rasgou a tela do inevitável.
5 de março
Os primeiros sinais do colapso do sistema de bolsas de valores e da economia se manifestam, especialistas em economia observam que desta vez, diferentemente de 2008, as intervenções dos bancos centrais ou de outras organizações financeiras não serão muito úteis.
Pela primeira vez, a crise não provém de fatores financeiros ou mesmo estritamente econômicos, do jogo da oferta e demanda. A crise vem do corpo.
É o corpo que decidiu desacelerar. A desmobilização geral do coronavírus é um sintoma de estagnação, mesmo antes de ser a causa.
Quando falo do corpo, refiro-me à função biológica como um todo, refiro-me ao corpo físico que adoece, embora de maneira um tanto leve — mas também e acima de tudo refiro-me à mente, que por razões que não têm nada a ver com raciocínio, com crítica, com vontade, com decisão política, entrou em uma fase de profunda passivação.
Cansada de processar sinais muito complexos, deprimida após superexcitação excessiva, humilhada pelo desamparo de suas decisões diante da onipotência do autômato técnico-financeiro, a mente diminuiu a tensão. Não é que a mente tenha decidido algo: é a repentina queda de tensão que decide por todos. Psicodeflação.
6 de março
Certamente, o exato oposto do que eu disse pode ser discutido: o neoliberalismo, em seu casamento com o etnonacionalismo, deve dar um salto no processo de abstração total da vida. Aqui está o vírus que força todos a ficarem em casa, mas não bloqueia a circulação de mercadorias. Aqui estamos no limiar de uma forma tecnototalitária na qual os corpos serão para sempre repartidos, controlados, mandados a distância.
Um artigo de Srecko Horvat é publicado na Internazionale (tradução de New Statesman).
Segundo Horvat, “o coronavírus não é uma ameaça para a economia neoliberal, mas cria o ambiente perfeito para essa ideologia. Mas, do ponto de vista político, o vírus é um perigo, porque uma crise de saúde poderia favorecer o objetivo etnonacionalista de fortalecer as fronteiras e a exclusividade racial e interromper a livre circulação de pessoas (principalmente se vierem de países em desenvolvimento), mas assegurando um movimento descontrolado de bens e capitais.
O medo de uma pandemia é mais perigoso que o próprio vírus. As imagens apocalípticas da mídia escondem um vínculo profundo entre a extrema direita e a economia capitalista. Como um vírus precisa de uma célula viva para se reproduzir, o capitalismo também se adaptará à nova biopolítica do século XXI.
O novo coronavírus já afetou a economia global, mas não impedirá o movimento e a acumulação de capital. De qualquer modo, em breve surgirá uma forma mais perigosa de capitalismo, que dependerá de maior controle e maior purificação das populações. ”
Obviamente, a hipótese formulada por Horvat é realista.
Mas acredito que essa hipótese mais realista não é realista, porque subestima a dimensão subjetiva do colapso e os efeitos a longo prazo da deflação psíquica na estagnação econômica.
O capitalismo conseguiu sobreviver ao colapso financeiro de 2008 porque as condições do colapso eram todas internas à dimensão abstrata da relação entre finanças e economia da linguagem. Ele não pode sobreviver ao colapso da epidemia porque um fator extra-sistêmico entra em jogo aqui.
7 de março
Me escreve Alex, meu amigo matemático: “Todos os recursos de supercomputação estão comprometidos em encontrar o antídoto ao coroa. Esta noite sonhei com a batalha final entre o biovírus e os vírus simulados. De qualquer forma, o humano já está fora, me parece.”
A rede global de computação está procurando a fórmula capaz de colocar o infovírus contra o biovírus. É necessário decodificar, simular matematicamente, construir tecnicamente o corona-killer, e depois espalhá-lo.
Enquanto isso, a energia é retirada do corpo social e a política mostra sua impotência constitutiva. A política é cada vez mais o lugar do não-poder, porque a vontade não tem controle sobre o infovírus.
O biovírus prolifera no corpo estressado da humanidade global.
Os pulmões são o ponto mais fraco, ao que parece. As doenças respiratórias vêm se espalhando há anos na proporção da disseminação de substâncias irrespiráveis na atmosfera. Mas o colapso ocorre quando, ao encontrar o sistema de mídia, entrelaçando-se com a rede semiótica, o biovírus transfere seu poder debilitante para o sistema nervoso, para o cérebro coletivo, forçado a desacelerar seus ritmos.
8 de março
Durante a noite, o primeiro-ministro Conte anunciou a decisão de colocar em quarentena um quarto da população italiana. Piacenza, Parma, Reggio e Modena estão em quarentena. Bolonha não. Por enquanto.
Nos últimos dias, conversei com Fabio, com Lucia e decidimos nos encontrar hoje à noite para jantar. De vez em quando, fazemos isso em um restaurante ou na casa de Fabio. São jantares um pouco tristes, mesmo que não contemos a nós mesmos, porque nós três sabemos que é o resíduo artificial do que costumava acontecer de forma completamente natural várias vezes por semana, quando nos reuníamos com mamãe.
O hábito de nos encontrar para o almoço da mãe (ou, mais raramente, para o jantar) permaneceu, apesar de todos os eventos, movimentos e mudanças, após a morte do pai: almoçávamos com a mãe toda vez que era possível.
Quando minha mãe se viu incapaz de preparar o almoço, esse hábito acabou. E pouco a pouco, a relação entre nós três mudou. Até então, embora tivéssemos sessenta anos, continuávamos a nos ver quase todos os dias de maneira natural, continuávamos a ocupar o mesmo lugar à mesa que ocupávamos quando tinha dez anos. Ao redor da mesa, os mesmos rituais eram realizados. Mamãe estava sentada ao lado do fogão, porque isso lhe permitiu continuar cuidando da cozinha enquanto comia. Lucia e eu conversávamos sobre política, mais ou menos como cinquenta anos atrás, quando ela era maoísta e eu obreirista.
Esse hábito terminou quando minha mãe entrou em sua longa agonia.
Desde então, temos que nos organizar para o jantar. Às vezes, vamos a um restaurante asiático localizado nas colinas, perto do teleférico na estrada que leva a Casalecchio; às vezes, vamos ao apartamento de Fabio, no sétimo andar de um edifício popular que passa pela ponte comprida, entre Casteldebole e Borgo Panigale. A partir da janela, você pode ver os prados que revestem o rio e, à distância, a colina de San Luca e, à esquerda, a cidade.
Então, nos últimos dias, decidimos nos ver hoje à noite para jantar. Eu teria que levar o queijo e o sorvete, Cristina, esposa de Fabio, havia preparado a lasanha.
Tudo mudou nesta manhã e, pela primeira vez — agora percebo — o coronavírus entrou em nossa vida, não mais como um objeto de reflexão filosófica, política, médica ou psicanalítica, mas como um perigo pessoal.
Primeiro, foi um telefonema de Tania, filha de Lucia, que vive em Sasso Marconi com Rita há um tempo.
Tania me ligou para dizer: ouvi dizer que você, mamãe e Fabio querem jantar juntos, não façam isso. Estou em quarentena porque uma das minhas alunas (Tania ensina ioga) é médica em Sant’Orsola e, há alguns dias, ela deu positivo para o teste. Eu tenho um pouco de bronquite, então eles decidiram me testar também, e enquanto aguardo o relatório, não posso sair de casa. Respondi de maneira cética, mas ela era implacável e disse algo bastante impressionante, no qual eu ainda não tinha pensado.
Ela me disse que a taxa de transmissibilidade de uma gripe comum é zero ponto vinte e um, enquanto a taxa de transmissibilidade do coronavírus é zero ponto oitenta. Para ser claro: no caso de uma gripe normal, você precisa se reunir com quinhentas pessoas para contrair o vírus, no caso do corona, você precisa se reunir apenas com cento e vinte. Interessante.
Mais tarde, ela, que parece estar muito informada porque foi fazer o teste e, portanto, falou com aqueles que estão na primeira linha da frente de contágio, me diz que a idade média dos mortos é de oitenta e um anos.
Bem, eu já suspeitava, mas agora eu sei. O coronavírus mata idosos e, em particular, mata velhos asmáticos (como eu).
Em sua última comunicação, Giuseppe Conte, que me parece uma boa pessoa, um presidente por acaso que nunca deixou de ter o ar de alguém que pouco tem a ver com política, disse: “Vamos pensar na saúde de nossos avós”. Comovente, já que me vejo no papel desconfortável do avô a se proteger.
Tendo abandonado o traje do cético, disse a Tania que estava agradecido e que seguiria suas recomendações. Liguei para Lucia, conversamos um pouco e decidimos adiar o jantar.
Percebo que me envolvi em uma clássica ligação dupla batesoniana. Se eu não ligar para cancelar o jantar, coloco-me em posição de ser um hóspede físico, de poder transportar um vírus que poderia matar meu irmão. Se, por outro lado, ligo, como estou fazendo, para cancelar o jantar, me coloco na posição de ser um hóspede psíquico, isto é, de espalhar o vírus do medo, o vírus do isolamento.
E se essa história durar muito tempo?
9 de março
O problema mais sério é a sobrecarga a que o sistema de saúde está sujeito: as unidades de terapia intensiva estão à beira do colapso. Existe o risco de não ser capaz de curar todos aqueles que precisam de intervenção urgente, fala-se da possibilidade de escolher entre pacientes que podem ser curados e pacientes que não podem ser curados.
Nos últimos dez anos, US $ 37 bilhões foram cortados do sistema público de saúde, unidades de terapia intensiva foram reduzidas e o número de clínicos gerais diminuiu drasticamente.
Segundo o site quotidianosanità.it, «em 2007, o Serviço Nacional de Saúde público poderia ter 334 Departamentos de Urgência (Dea) e 530 Primeiros Socorros. Bem, dez anos depois a dieta foi drástica: 49 Dea foram encerradas (-14%) e 116 primeiros socorros não existem mais (-22%). Mas o corte mais óbvio é nas ambulâncias, tanto do Tipo A (emergência) quanto do Tipo B (transporte médico). Em 2017, temos que o Tipo A foi reduzido em 4% em comparação com dez anos antes, enquanto o Tipo B foi reduzido pela metade (-52%). Também é preciso levar em consideração como as ambulâncias com um médico a bordo diminuíram drasticamente: em 2007, o médico estava presente em 22% dos veículos, enquanto em 2017 apenas em 14,7%. As unidades móveis de ressuscitação também caíram 37% (eram 329 em 2007 e 205 em 2017). O ajuste também afetou as casas de repouso particulares, que, em qualquer caso, têm muito menos estruturas e ambulâncias que os hospitais públicos.
«A partir dos dados, pode-se ver como houve uma contração progressiva de leitos em escala nacional, muito mais evidente e relevante no número de leitos públicos em comparação à proporção de leitos administrados privadamente: o corte de 32.717 leitos. O total em sete anos refere-se principalmente ao serviço público, com 28.832 menos leitos que em 2010 (-16,2%), em comparação com 4.335 menos leitos que o serviço privado (-6,3%) ».
10 de março
“Somos ondas do mesmo mar, folhas da mesma árvore, flores do mesmo jardim”.
Isso está escrito nas dezenas de caixas contendo chinstraps que chegam da China. Essas mesmas máscaras que a Europa nos rejeitou.
11 de março
Não fui à Mascarella, como geralmente faço em 11 de março de cada ano. Nos reencontramos em frente à lápide que comemora a morte de Francesco Lorusso, alguém faz um breve discurso, é colocada uma coroa de flores ou uma bandeira de Lotta Continua que alguém havia guardado no porão, e nos abraçamos, nos beijamos abraçando com força.
Dessa vez, não tive vontade de ir, porque não gostaria de dizer a nenhum de meus antigos companheiros que não podemos abraçar.
Imagens de pessoas comemorando vêm de Wuhan, todas usando rigorosamente a máscara verde. O último paciente com coronavírus recebeu alta de hospitais construídos rapidamente para conter o influxo.
No Hospital Huoshenshan, primeira parada de sua visita, Xi elogiou médicos e enfermeiros, chamando-os de “os mais belos anjos” e “os mensageiros da luz e da esperança”. Os profissionais de saúde da linha de frente assumiram as missões mais difíceis, disse Xi, chamando-as de “as pessoas mais admiráveis da nova era, que merecem os maiores elogios”.
Entramos oficialmente na era biopolítica, na qual presidentes não podem fazer nada e apenas médicos podem fazer alguma coisa, embora nem tudo.
12 de março
Itália. O país inteiro está em quarentena. O vírus corre mais rápido que as medidas de contenção.
Billi e eu colocamos nossa máscara, pegamos a bicicleta e fazemos compras. Apenas farmácias e mercados de alimentos podem permanecer abertos. E também os quiosques, compramos os jornais. E as tabacarias. Compro papel de seda, mas o haxixe escasseia em sua caixa de madeira. Logo estarei sem drogas, e na Piazza Verdi já não há mais nenhum dos garotos africanos que costumam vender para os estudantes.
Trump usou a expressão “vírus estrangeiro”.
Todos os vírus são estrangeiros por definição, mas o Presidente não leu William Burroughs.
13 de março
No Facebook, há um cara engenhoso que postou no meu perfil a frase: “Olá Bifo, eles aboliram o emprego”.
Na realidade, o trabalho é abolido apenas para alguns. Os trabalhadores das indústrias estão em pé de guerra porque precisam ir à fábrica como sempre, sem máscaras ou outras proteções, a meio metro de distância um do outro.
O colapso, depois as longas férias. Ninguém pode dizer como vamos sair disso. Poderíamos sair, como alguns preveem, nas condições de um perfeito estado tecno-totalitário. No livro Terra Negra, Timothy Snyder explica que não há melhores condições para a formação de regimes totalitários do que em situações de emergência extrema, onde a sobrevivência de todos está em jogo.
A AIDS criou a condição para o estreitamento do contato físico e para o lançamento de plataformas de comunicação sem contato: a Internet foi preparada pela mutação psíquica chamada AIDS.
Agora, poderíamos muito bem entrar em uma condição de isolamento permanente dos indivíduos, e a nova geração poderia internalizar o terror do corpo dos outros.
Mas o que é terror?
O terror é uma condição em que o imaginário domina completamente a imaginação. O imaginário é a energia fóssil da mente coletiva, as imagens que a experiência colocou nela, a limitação do imaginável. A imaginação é energia renovável e imparcial. Não utopia, mas recombinação dos possíveis.
Há uma divergência nos próximos tempos: poderíamos sair dessa situação imaginando uma possibilidade que até ontem parecia impensável: redistribuição de renda, redução do tempo de trabalho. Igualdade, frugalidade, abandono do paradigma de crescimento, investimento de energias sociais em pesquisa, educação, saúde.
Não podemos saber como sairemos da pandemia cujas condições foram criadas pelo neoliberalismo, pelos cortes na saúde pública, pela hiperexploração nervosa. Poderíamos sair dela definitivamente sozinhos, agressivos, competitivos.
Mas, pelo contrário, poderíamos sair dela com um grande desejo de abraçar: solidariedade social, contato, igualdade.
O vírus é a condição de um salto mental que nenhuma pregação política poderia ter produzido. A igualdade voltou ao centro da cena. Vamos imaginá-la como o ponto de partida para o tempo que virá.
Original em: https://not.neroeditions.com/cronaca-della-psicodeflazione/
Tradução: João Pedro Garcez
[update ] Segunda parte da Crônica:
https://cajanegraeditora.com.ar/blog/franco-bifo-berardi-reset/